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Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
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Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
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Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
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Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
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Eu não tinha que ter esperanças - tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
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O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
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E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
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E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
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Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
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Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
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Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
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O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
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A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O porfazer é só com Deus.
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E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
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E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
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E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
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Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
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Cronologia
1919 Nasce a 6 de Novembro no Porto, onde passou a infância. Aos 3 anos, tem o primeiro contacto com a poesia, quando uma criada lhe recita A Nau Catrineta, que aprenderia de cor. Mesmo antes de aprender a ler, o avô ensinou-a a recitar Camões e Antero.
1926 Frequenta o Colégio do Sagrado Coração de Maria, no Porto, até aos 17 anos. Primeiro semi-interna, depois externa. Tem professores marcantes, como a D. Carolina (de Português). E, apesar da pouca estima por disciplinas como Matemática e Química, nunca chumbou. Aos doze anos escreve os primeiros poemas. Entre os 16 e os 23 tem uma fase excepcionalmente fértil na sua produção poética.
1936 Estuda Filologia Clássica, na Faculdade de Letras de Lisboa, mas não leva a licenciatura até ao fim. Três anos depois, regressa ao Porto, onde vive até casar com Francisco Sousa Tavares, altura em que se muda definitivamente para Lisboa. Tem cinco filhos.
1944 Publica o primeiro livro, Poesia, uma edição de autor de 300 exemplares, paga pelo pai, que sairia em Coimbra por diligência de um amigo: Fernando Vale. Em 1975 seria reeditado pela Ática. Este livro é uma escolha, que integra alguns poemas escritos com 14 anos. É o início de um fulgurante percurso poético e não só. Publicaria também ficção, literatura para crianças e traduziu, nomeadamente, Dante e Shakespeare.
1947 O Dia do Mar, Ática
1950 Coral, Livraria Simões Lopes
1954 No Tempo Dividido, Guimarães
1956 O Rapaz de Bronze (literatura infantil), Minotauro
1958 Mar Novo, Guimarães; A Menina do Mar (infantil), Figueirinhas; A Fada Oriana (infantil), Figueirinhas. Escreve um ensaio sobre Cecília Meireles na «Cidade Nova»
1960 Noite de Natal (infantil), Ática. Publica o ensaio Poesia e Realidade, na
«Colóquio 8»
1961 O Cristo Cigano, Minotauro
1962 Livro Sexto, Salamandra, distinguido com o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1964; Contos Exemplares (ficção), Figueirinhas
1964 O Cavaleiro da Dinamarca (infantil), Figueirinhas
1967 Geografia, Ática
1968 A Floresta (infantil), Figueirinhas; Antologia, Portugália, cuja 5ª edição (1985 Figueirinhas) é prefaciada por Eduardo Lourenço
1970 Grades, D. Quixote
1972 Dual, Moraes
1975 Publica o ensaio O Nu na Antiguidade Clássica, integrado em O Nu e a Arte, uma edição dos Estúdios Cor. Deputada pelo Partido Socialista à Assembleia Constituinte. A sua actividade político-partidária, não foi longa, mas ao longo da sua vida sempre foi uma lutadora empenhada pelas causas da liberdade e justiça. Antes do 25 de Abril, pertence mesmo à Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos
1977 O Nome das Coisas, Moraes, distinguido com o Prémio Teixeira de Pascoaes
1983 Navegações (IN-CM), recebe o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação de Críticos Literários
1984 Histórias da Terra e do Mar (ficção), Salamandra
1985 Árvore (infantil), Figueirinhas
1989 Ilhas, Texto, distinguido com os Prémios D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus e Inasset-INAPA (1990)
1990 Reúne toda a sua obra em três Volumes, Obra Poética, com a chancela da Editorial Caminho; é distinguida com o Grande Prémio de Poesia Pen Clube
1991 - «Recordo-me de descobrir que num poema era preciso que cada palavra fosse necessária, as palavras não podem ser decorativas, não podiam servir só para ganhar tempo até ao fim do decassílabo, as palavras tinham que estar ali porque eram absolutamente indispensáveis. Isso foi uma descoberta» (JL 468, de 25/6/91)
1992 Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças
1994 Musa, Caminho. Recebe Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores. Publica Signo, um livro/disco com poemas lidos por Luís Miguel Sintra, uma edição Presença/Casa Fernando Pessoa
1995 Placa de Honra do Prémio Petrarca, atribuída em Itália
1996 Homenageada do Carrefour des Littératures, na IV Primavera Portuguesa de Bordéus e da Aquitânia
1997 - «A poesia é das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma quer a essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza» (JL 709, de 17/12/97)
1998 O Búzio de Cós, Caminho, distinguido com o Prémio da Fundação Luís
Míguel Nava
1999 Prémio Camões
Sophia de Mello Breyner Andresen morreu a 2 de Julho de 2004
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(www.instituto-camoes.pt)
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"A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do amor e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor...".
Sophia de Mello Breyner